Itinerãncia e intolerância

  Na minha ingenuidade de adolescente perguntei, certa vez, a um cigano: Você não se cansa de estar sempre mudando a residência de lugar? El...

 


Na minha ingenuidade de adolescente perguntei, certa vez, a um cigano: Você não se cansa de estar sempre mudando a residência de lugar? Ele me respondeu com outra pergunta que até hoje me faz pensar: - E você não se cansa de ver, todo dia, a paisagem do mesmo lugar?

O que parecia ser uma conversa infantil poderia nos render boas reflexões sobre a itinerãncia e a intolerância.  A itinerãncia, pelo visto, é nosso lugar natural tendo em vista que, nessa vida, “Todo Cãmbia”, ou seja, tudo muda, inclusive nós, mudamos. Apesar disso, buscamos sempre a estabilidade. Cercamos um pedaço de terra, vamos aos cartórios carimbar um monte de papéis e, então, dizemos que a terra é nossa. Ela deve morrer de rir de nossa pretensão. A terra está aí há milhares de anos e, do nada, chega um “Zé Ruela” e diz ser dono dela ou de uma de suas partes...Quem, de fato, é dono da terra? Só Deus que, sendo eterno, deve ser mais velho do que ela. Enquanto nós... Quem somos nós na fila do pão?

Outro tema sobre o qual podemos conversar é o da intolerância. Nesse ponto a gente tira de letra, infelizmente, pois, temos uma tendência enorme para intolerância com quem não pensa ou vive igual a nós. Porque os ciganos iriam querer um pedaço de terra se já têm a terra inteira? A minha pergunta, inocente, ao cigano revelava minha visão de mundo. Naquela visão eu era um centro fixo e tudo girava em torno de mim, inclusive o mundo, enquanto o cigano era o verdadeiro gira-mundo sem se considerar centro ou dono de nada. Por esse grau de liberdade poderia contemplar, cada dia, uma paisagem diferente. Hoje sonho que a terra se torne uma única habitação coberta por uma tenda azul que chamamos de céu. Sob essa tenda deveria viver e conviver, de forma harmoniosa, toda a família humana... Sonhar não custa nada!

Quando se debruça sobre a história do povo cigano, entretanto, esse romantismo, que idealiza a vida livre, não existe. Eles foram escorraçados e expulsos de todos os lugares por onde passaram como se não tivessem direito de existir enquanto povo com sua cultura e tradições. No Brasil, foram mal vistos, discriminados e perseguidos de maneira informal e oficial:

“Entre 1870 e 1930, muitos intelectuais brasileiros sentiram que deveriam abraçar o desafio de mudar (ou de definir) a configuração racial do Brasil, através de uma avaliação segura da realidade e pela definição de estratégias de ação. Em alguns casos eram propostas soluções da eugenia e de extermínio de populações indesejáveis, principalmente indígenas.  Possivelmente isso inspirou as ações da polícia mineira nas Correrias de ciganos. Outras vezes, propunha-se um esforço educativo para integrar certas parcelas da população, tentando-se ordenar o espetáculo das raças.  Tais ações seriam importantes na medida em que formar a raça brasileira significava construir a nacionalidade”. (1)

Para entender a afirmação acima devemos saber o que significa “eugenia”:

“A eugenia é a seleção dos seres humanos com base em suas características hereditárias com objetivo de melhorar as gerações futuras. O termo foi criado pelo cientista inglês Francis Galton (1822 - 1911), em 1883. A palavra eugenia deriva do grego e significa "bom em sua origem ou bem nascido". A eugenia defende que raças superiores e de melhores estirpes conseguem prevalecer de maneira mais adequada ao ambiente. Com isso, busca-se aplicar a teoria da seleção natural de Charles Darwin (1809 - 1882) à espécie humana”.(2)

Com base na “eugenia” muitos preconceitos e discriminações foram e ainda existem no Brasil e em todo o mundo. Para constatar isso, basta ver como os indígenas, negros, ciganos e outros grupos se integraram à sociedade brasileira. Adjetivos como: horda, manada, desordeiros, preguiçosos, vagabundos, escórias, não foram raros nos jornais de épocas passadas, quando tratavam de certos grupos humanos que se indispunham com a polícia. Infelizmente essa não é só uma realidade brasileira. Nenhum grupo tem sofrido tanto vivendo fora de seu pais como os imigrantes. Em alguns lugares são vistos como cidadãos de segunda categoria como se fossem uma sub-raça e, muitas vezes, culpados até pelos desastres da economia. Estamos longe do ideal de uma convivência harmoniosa que, apesar das diferenças, vê o ser humano como uma única raça. O homem já foi à lua e chegou perto de Marte, mas ainda tem dificuldades de conviver com o próximo que lhe é diferente.

Imagem de andychiboub por Pixabay

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  1. Este é mais um rico texto construido e que nos leva a muitas boas reflexões.
    Quando cita o domínio do homem sobre a terra me remete ao pensamento que faço principalmete quando viajo, e vejo grandes extensões provavelmente de poucos ou único "dono", mas está sendo usada apenas para especulação. Valorização é o que acreditam virá com o tempo, no entanto faz falta para quem gostaria de tirar frutos do trabalho com a terra. Chamo este fato de desigualdade social.
    Nos seres humanos temos sim muito a evoluir, e se mostra em atraso quando acredita ter superioridade de raça.
    Finalizo dizendo que toda guerra que já existiu, e existe é resultado da ganância principalmente terriorial, e da ausência do sentimento fraterno.

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  2. Que eu mude não é estranho. Todos podemos cambiar as nossas consciências e buscar a tolerância como modo de viver. Já dizia Belchior: amar e mudar as coisas me interessa mais ".

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  3. Que texto lúcido! Eu também nunca havia pensado deste ponto de vista dos ciganos...
    Penso muito na casa, moradia, como lugar da segurança, do aconchego, dos amores. Não ter morada, viver a deriva, acho um desafio... Precisamos conversar sobre isso.

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  4. O texto mostra q não devemos debochar, de quem pensa diferente de nós, devemos respeitar a história do outro mesmo que não concordamos, no caso dos ciganos, muita das vezes eles mudam de lugar por conta de perseguição, preconceito , expulsão e etc, sendo uma forma de sobrevivência , e com isso eles conseguem se adaptar em diferentes tipos d cultura, ....Sem endereço fixo, vivendo o hoje, e a casa deles é o mundo...

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  5. O sentimento de pessoas diferentes, podem levá-los a diversas possibilidades. Se tentar ser igual a maioria, sofrem interiormente, deixando-os depressivos, ansiosos, etc... Construir relacionamentos, os torna muito presunçosos, alienados, desconfiados. Por isso que hoje os consultórios psiquiátricos, estão sempre cheios. Com relação ao que nós adquirimos ao longo da vida, mas não somos donos de nada. E a maís pura verdade, só pagamos aluguel por algum tempo. No final, tudo retorna para o "verdadeiro dono" Deus.

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  6. Nossa! Quanta coisa interessante aprendendo com Padre Gabriel! Quando eu era criança e era tempo de colher arroz , existia uma banca com uma lona preta ao redor da banca, pra que os trabalhadores pudessem bater o arroz. Se a gente chorava por algum motivo, lá vinha nossa mãe sufocando nosso choro,dizendo: Não chora ,porque aquela lona preta é a casa do Cigano bravo que pega criança que chora! Meu DEUS! Quanto trauma a gente vem carregar pela estrada da vida!

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  7. Obrigada por este texto, me fez refletir sobre a graça de viver em um lugar maravilhoso e abençoado o qual nunca me canso de viver .

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  8. Verdade!
    Sem perceber mudamos nossos olhares com esses seres humanos, por mera "formalização de raça", e sem respeitar suas tradições e a cultura.

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