Quaresma da minha infância

Perdoe-me pelo que vou dizer. É coisa de minha infância. Tenho uma memória afetiva que pede expressão com sessenta anos de atraso! Qu...



Perdoe-me pelo que vou dizer. É coisa de minha infância. Tenho uma memória afetiva que pede expressão com sessenta anos de atraso! Quero falar sobre o tempo da quaresma na minha infância. Esse tempo era para mim, o mais sombrio do ano...

Como todos sabem, nasci na roça, de uma família muito simples. Não tínhamos participação nas coisas da Igreja. Morávamos longe da cidade e, para minha pouca idade, as distâncias aumentavam ainda mais. Sou de família católica, mas de um catolicismo popular, que soube guardar o amor a Deus e o temor pelas coisas sagradas. Não tive uma formação religiosa como muitos a tem hoje. Meu imaginário infantil foi povoado de Lobisomens e Mulas sem cabeças. Meu pai jurava ter ouvido o relinchar de uma mula sem cabeça nas proximidades de nossa casa. Eu nem questionava por onde ela relinchava já que não tinha cabeça...

Minha mãe, que Deus a tenha, morria de medo de assombrações.  Dizia-nos, que no tempo da quaresma o diabo estava solto. Então, a gente torcia para que esse tempo passasse logo e o bicho voltasse de novo para o inferno que era o seu lugar natural. Nossa visão de mundo era muito simples: De um lado estava Deus, do outro o diabo e a gente espremida ali no meio, quase sem respirar. Meu pai dizia que alguns tomavam parte com o diabo e, só por isso, se davam tão bem na vida! Talvez, isso explicasse um pouco nossa pobreza. Éramos pobres, mas estávamos do lado de Deus e, por isso, éramos abençoados.

Quando chegava o tempo da quaresma, ninguém deveria ter em casa uma criança sem batismo. Meu pai dizia que ela seria o prato principal do Lobisomem. Contava a história de um homem que “virava” lobisomem. Certa ocasião, quando ele se “desvirou” depois da  lua cheia, todos notaram que, entre os seus dentes, havia restos do manto de uma criança que ele tentara devorar em algum lugar. Além de comer crianças sem batismo, o lobisomem comia goiabas maduras e cocô de galinhas. Naquele tempo, as galinhas empoleiravam-se sobre as goiabeiras. Ninguém duvidava do risco de passar perto de uma goiabeira numa noite escura. Bastava o cheiro de goiaba ou o mal cheio do cocô das galinhas para colocar qualquer um em rota de fuga...

Por alguma razão eu pensava que a quaresmeira era a culpada de tantos maus agouros. É que no tempo da quaresma ela florescia-se toda, como uma viúva enlutada. Assim, não deixava a gente esquecer-se das histórias macabras. Certa vez, pequei um pedaço de bambu verde e destruí, sem dó, todas as quaresmeiras da estrada, perto de casa. Aquelas flores roxas nem deveriam existir... Assim, pensava eu, naquele tempo. Hoje, ao ver as quaresmeiras, tão lindas, me recordo desse crime ambiental motivado pelo medo...

Seja como for, a quaresma, naquele tempo tinha outro peso. Os vizinhos mais abastados alugavam casas na cidade só para passar o período da Semana Santa. Punham alguns colchões de palhas no carro de boi, algumas latas de mantimentos e cinco dúzias de meninos... Essa era outra marca do meu tempo de infância. Ninguém economizava em filhos... Meus pais tiveram problemas, pois só conseguiram nove. Meus avós maternos tiveram dezessete! Ô vida boa, sô! E pensar que a TV estragou tudo isso...

As crianças vizinhas voltavam cheias de histórias da Semana Santa. Falavam das lâmpadas elétricas, dos vasos sanitários e muitas coisas de outro mundo!  Para quem usava bananeiras como banheiro, vaso sanitário era um luxo só! A Semana Santa valia pelo conjunto. Pouca gente entendia o sentido litúrgico de tudo aquilo. Mas, adoravam o canto macabro e, quase sempre desafinado, da Verônica, que mesmo não sabendo, cantava em latim... Mas, ninguém ligava muito para isso. As encenações eram lindas. Ver o sofrimento de Cristo aliviava um pouco o sofrimento da gente...

No tempo da quaresma, como de resto o ano todo, a gente não comia carne. Mas, nesse tempo estava certo. Seria mesmo um abuso morder numa coxa de frango. Na quaresma deveríamos abolir o prazer. O jejum já era uma prática normal, pois quase nada tínhamos. A diferença era que, na hora do almoço, em dia de jejum, minha mãe punha uma toalhinha branca  sobre a mesa. Aquela toalhinha era um sinal de permissão para comer: Um feijão ralo, angu, abobrinha... O resto era só farinha de mandioca. Quanto à toalhinha, até hoje não sei o que significava. Na sexta-feira da paixão, a gente buscava leite nos vizinhos, mais abastados, para fazer doce. Era o único dia do ano que mamãe fazia doce de leite. Até hoje sinto o gosto dele em minha boca.

Tenho saudade de minha infância. O tempo não era vivido como igual. Havia tempos santos e profanos. Tudo era demarcado. Hoje está tudo misturado demais. Nada mais é sagrado... Se não fosse pelo Papai Noel as crianças não distinguiriam mais a quaresma do natal... Deus parece não contar mais e o diabo foi reduzido a uma alegoria da escola de samba...

Imagem: Arquivo pessoal
Vídeo: Canto da Verônica


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  1. Nossa! Como lembro das histórias e celebrações da quaresma e Semana Santa! Este texto me fez recordar tanta coisa...

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  2. Perfeito,mto lindo e real!!Desse jeitinho mesmo!!

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  3. Crônica cheia de um lirismo muito agradável de se ler e que também remeteu-me à minha infância...
    Permeando eßse lirismo, uma ironia velada quanto aos costumes e à diferença social da época.
    Muito bem construído o último parágrafo onde se nota a falta de crença em Deus ou no Diabo, o que, a meu ver, seja a causa da falta de caridade, compaixão e amor que envolve toda a humanidate...

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  4. Quem đe nos não vivenciamos parte dessa história!😆😆😆😆

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  5. Realmente, antigamente o sagrado era mais respeitado, havia o temor a Deus. E Deus ocupava o centro. Hoje o homem se acha o dono e doutor de tudo e desvaloriza tudo que nos foi ensinado pela tradição.

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  6. Que beleza de crônica. Fez-me voltar também cada espaço da minha infância. Obrigado por isso! Parabéns!

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  7. Padre Gabriel, muito inspiradoradora sua crônica... Voltei aos bons e velhos tempos. Uma boa caminhada quaresmal para você e seus seguidores...sem lobisomens e ou mulas sem cabeça!!!

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  8. Kkk esqueceu do lobisomem, que aparecia com olhos velhos no meio da bananeira , nossa privada era latas num canto qlqr durante a noite, porque ninguninguém se atrevia ir no quintal.
    Minha vó contava causos que dos ninguém era capaz de dormir sozinho, até pq , os colchões de palha tinham que ser divido entre 4 crianças. Kkkk 2 pra baixo e 2 pra cima. Eita sofrimento!!! Mas, é muita lembrança Boa.

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  9. Nossa ! Como esse texto me fez recordar minha infância também. Eu e meus irmãos também ouvíamos essas histórias . Morramos de medo da quaresma . As vezes ficávamos com medo de comer goiaba . com medo de estar babujada pelo lobisomem .Engraçado que ao recortar essas histórias do passado , hoje vejo homens iguais lobisomem . Que se transformam em bicho , mesmo aparentando bonzinho . TENHO MEDO . M as com orações o encanto se quebra .

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  10. Que beleza poder viajar com o Sr nesse mundo tão belo e puro de sua infância.
    Ainda tenho boas memórias de valores parecidos da minha.
    É bom ler e atentar de nós cuidarmos, para que essa geração não se recorde apenas do tempo que passaram na frente dos eletrônicos. Tá uma tristeza a realidade hoje

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  11. Meu amigo querido Padre Gabriel!! Seu texto me fez lembrar minha infância,tudo isso eu ouvia de meus Pais também, grande abraço.

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  12. Maravilha meu amigo Padre Gabriel,me fez lembrar da minha infância e dos comentários de meus Pais como sempre seus textos são ótimos.

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  13. Rindo Demais aqui ... Das recordações!

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  14. Que beleza de crônica. Fez-me voltar também cada espaço da minha infância. Obrigado por isso! Parabéns!

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  15. Parabéns padre Gabriel.Lindo texto e inspirador dá até pra imaginar cada Sena

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  16. Louvado seja Deus por mais uma quaresma iniciada hoje!Que Deus nos de o privilégio de viver muitas outras. Padre mesmo morando na cidade faz tempo, eu consigo ver a beleza de muito isso contado na crônica. A quaresma.. SEMANA SANTA pra mim é divino!

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  17. Ainda acredito que na quaresma as tentações e provações são maiores. Encantada com sua infância, em alguns aspectos se assemelha com as minhas lembranças da infância.

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  18. Gostei da história padre, minha mãe leu para mim.

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  19. É Padre, a gente sabia que ia chegar a quaresma pois tava no carnaval e logo depois íamos passar por um longo tempo de silêncio. Radiola era ligada baixinho, mais baixo ainda por que chiava muito. Os encontros com o Padre Luiz no comando da saudade. As matracas era de deixar sem dormir com o Sr Osmar batendo aquilo pra gente não olhar pra trás, ia ver as almas penadas no fim da procissão. Quem tem acima de 50 sabe do que falo aqui em Itaúna no padre Eustáquio. Agora, a festa satanizada do carnaval envadi a quaresma adentro. Não basta começar bem antes da Data ,tem que espichar no tempo santo.

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  20. Um tempo feliz e não sabíamos, assim conta meus avós.....

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  21. Delícia de texto. Amo ler tudo que remete a sua infância. Quanto sofrimento e ao mesmo tempo amor de verdade.

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  22. Maravilhoso. Voltei a minha infância. Comíamos abóbora e angu mas éramos felizes. Hoje tem tanta coisa e tudo rouba a felicidade de muitos.

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  23. ..."Éramos pobres, mas estávamos do lado de Deus, e pronto!"... É o que vale padre.

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  24. Que texto agradável! Bom demais ler textos assim que me fazem voltar no tempo, “sentir o cheiro” da época.
    No meu tempo a quaresma era marcada com dias tristes, sérios e cinzentos. Quase sempre chovia nessa data. Havia um clima de respeito no ar. Eu gostava demais das comemorações e celebrações religiosas.
    Infelizmente, hoje em dia, a semana santa já não tem o mesmo sentido. Muitos só pensam em viajar, beber, se divertir e até mesmo “comemorar” a Sexta-feira Santa, e depois querem professar a fé católica. Lamentável!

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  25. Também viajei no tempo, dos casos contados..."Hoje está tudo misturado demais. Nada mais é sagrado..." Mas ainda continuam os dois caminhos: o de Deus e o do diabo. Que Deus nos ajude a permanecer em Seu caminho .

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  26. CHAMAMOS DE SEMANA SANTA.... A
    QUARESMA OS SÃO DIAS SANTOS...
    HOJE NEM SE FALA MAIS... ACABOU...TODAS AS CELEBRAÇÕES QUE MANTINHAM A FÉ DOS CATÓLICOS PRINCIPALMENTE DAS CRIANÇAS...
    É MUITO TRISTE VER TUDO ISSO ACABAR...

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  27. Realmente era isso mesmo eu também passei por isso tudo

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  28. Eu contaria um pouco diferente pq eu morava na cidade mas tinha o lobisomem também, e até mula sem cabeça, mas guardavamos a quaresma com muito respeito mesmo, mesmo criança eu tinha que cumprir tudo que vovô ensinava, detalhe, quando ligava televisão, era só o jornal , não podia Sister mais nada.Era realmente a semana santa, não tínhamos aula, mas íamos em todas as procissões desde o domingo de Ramos até no sábado da aleluia.Viviamos de verdade este tempo quaresmal.A sua história vai ser diferente realmente só na questão geográfica.E tenho muita saudades deste tempo.A gente crescia na fé.

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  29. Padre Gabriel,sua História é linda! Passa um filme na nossa cabeça... Obrigada por relatar com grande simplicidade, prá nós,todo tempo de quaresma que o Sr.e sua família viveram.Que jamais percamos a amizade com DEUS e a esperança na vida eterna! Um grande abraço da amiga Maria Adélia

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  30. Verdade Padre, parabéns pelo texto!!

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  31. Lindo texto. Vivi essas histórias também. Eram contadas pelo meu pai. Ele via os sinais dos pés da mula sem cabeça, quando de manhã ia para o curral tirar o leite. Eu nunca vi. Rsrsrs...

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  32. Lindo texto! Realmente antigamente a quaresma todos tinham mais temor de tudo,pois falavam que é a época que o diabo ficava solto kkk. Lógico que tudo isso era a falta do entendimento litúrgico.

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  33. Padre Geraldo , adoro este seu humor para relatar os fatos! Foi a realidade de muitos.
    Me encaixo um pouco aí , nestas histórias.Nossos pais adoram amendrotar -nos com estes casos,para que ficassemos quietos.😔😅
    Oh maldade!😅

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  34. Muito engraçado imaginar o que o menino Geraldo Gabriel sentia ao ouvir essas histórias!

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