Falta de assunto

  Assuntos sobre os quais escrever não nos faltam. Mas, porque eles somem, de repente? Qual nuvem escondem os assuntos apropriados às crônic...

 


Assuntos sobre os quais escrever não nos faltam. Mas, porque eles somem, de repente? Qual nuvem escondem os assuntos apropriados às crônicas? Não sei! Não sou eu quem os encontra. Eles se encontram comigo. Chegam sem pedir licença e vão se ocupando da cabeça da gente. Daí para o texto é um pulo. Hoje, por exemplo, amanheci sem assuntos. Logo cedo peguei no batente, esperando encontrar na rotina um assunto desprevenido para que eu me apossasse dele. Levantei-me mais tarde que de costume, tomei banho, fiz barba, limpei, banheiro, garagem e escadas. Nada de encontrar o tal do assunto. Parece que ele levantou-se mais tarde do que eu. Vida que segue: lavei roupas, ajeitei-as no varal e só depois pararei para rezar. A reza também sumiu. Ô meu Deus, é hoje! Sem assuntos para crônica, sem reza sem nada...

O tempo é implacável com a gente. Ele foi passando rápido e nada de inspiração.  Lembrei-me de uma crônica de Clarice Lispector chamada “O milagre das folhas”. No texto, Clarice transformou a queda de uma única folha seca numa espécie de milagre descartável. Mas, como ela pode escrever, magistralmente, a partir de uma situação tão simples e corriqueira? Isso me consolou um pouco. Sem querer me comparar àquele monstro sagrado da literatura tive a tentação de pensar que os assuntos também pirraçavam a “pobre” Clarice. Pobre de mim pensei:  Se Clarice botasse um pingo no papel aquilo já seria uma grande obra de literatura. Eu posso derramar uma lata de tintas no papel que meu texto, caso fosse para o jornal, serviria apenas para enrolar rapaduras... 

Uma imagem bonita me veio à cabeça: Palavras que servem de cobertor às rapaduras! Uma doce lembrança de minha infância! Quando criança meu pai trazia rapaduras da cidade para adoçar nossa miséria. A família era grande e a rapadura pouca. Mas, o jornal que a enrolava... Eu nunca desperdicei aqueles fragmentos de textos adocicados. Sempre os lia, antes de entregá-los às formigas. Às vezes, eram notícias de crimes ou receitas de bem viver. Não sei por que todos gostam de receitas de bem viver. Por isso, os astrólogos ainda tem emprego garantido... Você é de touro? perguntava o texto do jornal. – Então é bom vestir-se de verde no dia de hoje. Os mais empolgados vestiam se com a Bandeira do Brasil, mas nada acontecia de diferente em suas vidas. É de virgem? Iche! Agora a coisa complicou, pensavam as solteironas. É de capricórnio? Ninguém, naquele lugar, sabia o que significava “capricórnio”. Mas, na dúvida evitava sair de casa seguindo às orientações... Para mim, capricórnio era um cabrito que puxava uma carrocinha. E eu nunca soube o que poderia haver em comum, entre eu, e aquele cabritinho, cuja foto no jornal estava borrada de rapadura. Apesar de algumas previsões sombrias, nossa vida seguia iluminada! Hoje tudo ficou para trás, menos às rapaduras que ainda consumo com prazer.

Minha falta de assunto atual levou-me de encontro de outro grande escritor que, confessou também padecer dessa doença: Fernando Sabino. Imagine! Em seu texto: “A última crônica”, chegou a confessar: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica...”. Felizmente, naquele dia, Fernando Sabino encontrou um assunto bonito, ao contemplar a felicidade de um casal que em sua pobreza, cantaram parabéns para a filhinha de três anos numa mesa de bar, diante de um simples pedaço de bolo...

Como se pode ver, nesse quesito, hoje eu não estou só. Na companhia de Clarice e Fernando Sabino, o que mais poderia querer da vida? O assunto continua sumido. Mas, agora não estou só. Converso com Clarice e Fernando. Com alegria digo-lhes, que temos pelo menos uma coisa em comum, de vez em quando: Nossa falta de assunto! Que ambos, lá do céu, me perdoem por me colocar ao lado deles aqui na terra. Amém.

Imagem de IgorSuassuna por Pixabay 

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