Kabir: O tecelão das palavras
Hoje gostaria de fazer um comentário sobre um poeta e místico indiano chamado Kabir que viveu no Séc XV. Mas, como de costume, antes de fala...
Outra pergunta que também faço a mim mesmo: Com tantos pensadores
e místicos cristãos cujos pensamentos seriam mais fáceis de serem
compreendidos, porque buscar um pensador oriental onde não dominamos sua matriz
cultural e, por isso, tudo parece mais complicado para nosso entendimento?
Confesso que não sei responder, claramente, tal pergunta mas, penso que depois
de subirem alguns degraus na escada da santidade todos os místicos falam a
mesma língua independentemente de qual direção tenham começado a subirem nessa
escada. Assim, me parece próximo o pensamento de Kabir (indu), São João da Cruz
(cristão), Rumi (muçulmano) ou quem quer que seja. Deus é sempre o mesmo apesar
dos diferentes nomes que possa ter...
O que se sabe, ao certo, sobre Kabir é que viveu grande parte
de sua vida em Varanasi, uma das Cidades sagradas mais antigas da Índia. Como
ele recitava, oralmente, os seus poemas então, não foi fácil para Tagore catalogar
parte deles. Nessa empreitada teve que entender e traduzir onze idiomas (sânscrito,
árabe, farsi, hindi, urdu, avadhi, bhojpuri, braj brasha, rajasthani, khadi
boli e punjabi). Kabir foi um crítico ferino da religião institucionalizada
sendo acusado de herege por alguns e considerado santo pelo Hinduísmo,
Islamismo e Siquismo. Tornou-se um guia espiritual do Ioga e do sufismo.
Assim como Jesus criticou a hipocrisia dos fariseus e mestres
da lei, em seu tempo, Kabir foi um grande crítico do exibicionismo e da
ostentação religiosa de sua época. Suas críticas se estendiam ao Hinduísmo e
Islamismo. Então, como se pode ver, acabou arranjando ótimos inimigos nas duas
direções. Duas tradições que fugiram desse exibicionismo da fé, naquele tempo,
foram: Bhakti ioga (Caminho da devoção, no Hinduísmo) e o Sufismo que, no Islamismo,
buscou aprofundar na interioridade da fé. Com sua poesia devocional kabir
escalou grande altura de contemplação mística à exemplo de São João da Cruz e
Tereza de Ávila, no Ocidente. Sobre o Sufismo já andei falando por aqui (https://ggpadre.blogspot.com/2020/04/sufismo-amai-menos-o-jarro-do-que-agua.html) e num outro momento retornaremos ao
tema. (A foto em destaque mostra um mistico do Sufismo islã).
Segundo a tradição, Kabir nasceu de uma família hinduísta e acabou
sendo criado por um casal de tecelões muçulmanos. Por isso, em nosso texto foi
intitulado como “tecelão da palavra”. Seu nome “Kabir” quer dizer “grande,” em
árabe. Esse também é um dos 99 nomes de Deus mencionados no Corão, o livro
sagrado do Islã. Kabir foi discípulo de Ramananda, um grande sábio hinduísta
mas, não foi aceito pelos discípulos do seu mestre por preconceito de castas. Ramananda
é considerado um mestre do Bhakti ioga hinduísta e foi o primeiro a aceitar
discípulos procedentes de todas as crenças e credos. Seguindo o seu mestre
espiritual, Kabir também alcançou grande patamar de santidade. Ao que parece
ele teria sido casado e fora pai de dois filhos.
Kabir foi praticamente desconhecido no Ocidente até que
Tagore (1861 – 1941) traduzisse cem de seus poemas do bengali para o inglês. Ele
fez essa tradução para passar o tempo durante uma longa travessia marítima em
direção à Inglaterra em 1912. Essa tradução foi publicada em 1915 e, só então,
podemos conhecer a riqueza desses poemas.
Para entender o pensamento de alguns sábios orientais como
Kabir, por exemplo, é preciso entender o que significa ter uma visão monista da
realidade. Desde que nascemos, principalmente no Ocidente, estamos mergulhados numa lógica dualista e, por
isso, temos embaraços para compreender a realidade de forma não dual tal como a
compreende a filosofia advaita vedanta. Mas
o que é “Vedanta”? É uma visão filosófica
que nasceu com os Upanihads. E o que é “Upanishads”? São tratados místicos para
compreender o vedas. Vedas são os quatro livros sagrados do Hinduísmo. Os
Upanishads são 108 textos (alguns afirmam que são mais de 200) que explicam os
Vedas. Vale dizer que a somatória de 108 (1+8 ) é igual à nove e nove é um
número místico para aquele entendimento. Os upanishads foram produzidos ao
longo de dois mil anos tendo início antes do Budismo até à Idade Média. Da compreensão
dos upanishads resultaram duas visões
da realidade: Dvaita e Advaita. A visão dvaita diferencia o criador da
criatura. Na advaita criatura e criador são uma única realidade. A criatura não
é um objeto externo ao criador mas, a sua manifestação.
A filosofia não dual (Advaita Vedanta) teve como principal
expoente o filósofo Chankara Charya (788 – 820 d. C) . Chankara concebia Deus
ou o Ser supremo (Brahman, sem atributos) como a única realidade existente, um “primeiro
sem segundo”, ao mesmo tempo transcendente e imanente. Um ser que existe em si
mesmo e se manifesta de maneira velada por trás das aparências e fenômenos do
mundo. O mundo é ilusório. Só existe Brahman. Brahman é o mundo. Essa filosofia
está presente no pensamento de Kabir que também sustentava uma visão monista da
realidade. Deus em tudo se manifesta e, simultaneamente, transcende a toda a
manifestação. Para concluir cito um de seus poemas onde essa forma de pensar me
parece bastante evidente:
[Poema 14]
O rio e suas ondas
correm juntos. Que diferença existe entre eles?
A onda que sobe é água
do rio. A onda que desce é água do rio.
Ao subir e descer como
onda, a água continua a ser rio.
No interior do supremo
Brahman, os mundo são contas de um rosário.
Ao girar o rosário
entre os dedos, recita o Nome com sabedoria.
[Poema 7]
Ao desvelar-se, Brahman
dá a ver o invisível.
Como a semente carrega
a potência da árvore,
E a árvore traz consigo
a promessa da sombra,
Assim, Ele engendra o incontável
sem forma,
E o incontável,
miríades de formas sem conta.
Em Brahman, o ente; no
ente, Brahman:
Sempre distintos;
todavia, sempre um.
Ele: a semente, a
árvore, a sombra.
Ele: o sopro, apalavra,
o sentido.
Ele: também o que não
pode ser dito.
No interior da alma,
vejo a alma suprema.
No interior da alma
suprema, o grande ponto*
No interior do grande
ponto, o reflexo.
Ó irmãos, como expressar
tal maravilha?
Kabir é abençoado por
ter esta visão!
*O grande ponto, é o mahabindu, um conceito fundamental da cosmogonia
hinduísta. Conforme suposição dos antigos sábios, nesse ponto sem dimensões ,
nesse “nada que é tudo”, para repetirmos as palavras de Fernando Pessoa, o
Absoluto, ensimesmado, preexiste a toda manifestação e relativização (nota do
livro citado).
Imagem de svklimkin por Pixabay
No vídeo, mais explicações sobre o pensamento de Kabir. Quem comenta é José Tadeu Arantes, o mesmo que traduziu o livro: Kabir: Cem Poemas. Vale a pena ver!
Gostei Gabriel... Excelente
ResponderExcluirPoema que nos leva a belas reflexões
ResponderExcluirParabéns padre Gabriel pela grande sabedoria em nós transmitir essas maravilhas!
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