Kabir: O tecelão das palavras

Hoje gostaria de fazer um comentário sobre um poeta e místico indiano chamado Kabir que viveu no Séc XV. Mas, como de costume, antes de fala...

Hoje gostaria de fazer um comentário sobre um poeta e místico indiano chamado Kabir que viveu no Séc XV. Mas, como de costume, antes de falar da obra de alguém, temos que falar desse alguém, e é aí que nasce uma primeira dificuldade. Na verdade, sabemos pouco sobre esse homem e os dados sobre ele, muitas vezes, são controversos. Não se sabe, ao certo, onde nasceu, quem foi sua família e quantos foram os poemas que deixou. Como se pode ver, o terreno é escorregadio e o campo duvidoso. Então, vou me ater ao que parece mais correto. O que colocarei aqui foi tirado, basicamente do livro: Kabir: Cem Poemas. Seleção e tradução para o inglês de R. Tagore. Tradução e notas de José Tadeu Arantes. São Paulo: Attar, 2016.

Outra pergunta que também faço a mim mesmo: Com tantos pensadores e místicos cristãos cujos pensamentos seriam mais fáceis de serem compreendidos, porque buscar um pensador oriental onde não dominamos sua matriz cultural e, por isso, tudo parece mais complicado para nosso entendimento? Confesso que não sei responder, claramente, tal pergunta mas, penso que depois de subirem alguns degraus na escada da santidade todos os místicos falam a mesma língua independentemente de qual direção tenham começado a subirem nessa escada. Assim, me parece próximo o pensamento de Kabir (indu), São João da Cruz (cristão), Rumi (muçulmano) ou quem quer que seja. Deus é sempre o mesmo apesar dos diferentes nomes que possa ter...

O que se sabe, ao certo, sobre Kabir é que viveu grande parte de sua vida em Varanasi, uma das Cidades sagradas mais antigas da Índia. Como ele recitava, oralmente, os seus poemas então, não foi fácil para Tagore catalogar parte deles. Nessa empreitada teve que entender e traduzir onze idiomas (sânscrito, árabe, farsi, hindi, urdu, avadhi, bhojpuri, braj brasha, rajasthani, khadi boli e punjabi). Kabir foi um crítico ferino da religião institucionalizada sendo acusado de herege por alguns e considerado santo pelo Hinduísmo, Islamismo e Siquismo. Tornou-se um guia espiritual do Ioga e do sufismo.

Assim como Jesus criticou a hipocrisia dos fariseus e mestres da lei, em seu tempo, Kabir foi um grande crítico do exibicionismo e da ostentação religiosa de sua época. Suas críticas se estendiam ao Hinduísmo e Islamismo. Então, como se pode ver, acabou arranjando ótimos inimigos nas duas direções. Duas tradições que fugiram desse exibicionismo da fé, naquele tempo, foram: Bhakti ioga (Caminho da devoção, no Hinduísmo) e o Sufismo que, no Islamismo, buscou aprofundar na interioridade da fé. Com sua poesia devocional kabir escalou grande altura de contemplação mística à exemplo de São João da Cruz e Tereza de Ávila, no Ocidente. Sobre o Sufismo já andei falando por aqui (https://ggpadre.blogspot.com/2020/04/sufismo-amai-menos-o-jarro-do-que-agua.html) e num outro momento retornaremos ao tema. (A foto em destaque mostra um mistico do Sufismo islã).

Segundo a tradição, Kabir nasceu de uma família hinduísta e acabou sendo criado por um casal de tecelões muçulmanos. Por isso, em nosso texto foi intitulado como “tecelão da palavra”. Seu nome “Kabir” quer dizer “grande,” em árabe. Esse também é um dos 99 nomes de Deus mencionados no Corão, o livro sagrado do Islã. Kabir foi discípulo de Ramananda, um grande sábio hinduísta mas, não foi aceito pelos discípulos do seu mestre por preconceito de castas. Ramananda é considerado um mestre do Bhakti ioga hinduísta e foi o primeiro a aceitar discípulos procedentes de todas as crenças e credos. Seguindo o seu mestre espiritual, Kabir também alcançou grande patamar de santidade. Ao que parece ele teria sido casado e fora pai de dois filhos.

Kabir foi praticamente desconhecido no Ocidente até que Tagore (1861 – 1941) traduzisse cem de seus poemas do bengali para o inglês. Ele fez essa tradução para passar o tempo durante uma longa travessia marítima em direção à Inglaterra em 1912. Essa tradução foi publicada em 1915 e, só então, podemos conhecer a riqueza desses poemas.

Para entender o pensamento de alguns sábios orientais como Kabir, por exemplo, é preciso entender o que significa ter uma visão monista da realidade. Desde que nascemos, principalmente no Ocidente, estamos mergulhados numa lógica dualista e, por isso, temos embaraços para compreender a realidade de forma não dual tal como a compreende a filosofia advaita vedanta.  Mas o que é “Vedanta”?  É uma visão filosófica que nasceu com os Upanihads. E o que é “Upanishads”? São tratados místicos para compreender o vedas. Vedas são os quatro livros sagrados do Hinduísmo. Os Upanishads são 108 textos (alguns afirmam que são mais de 200) que explicam os Vedas. Vale dizer que a somatória de 108 (1+8 ) é igual à nove e nove é um número místico para aquele entendimento. Os upanishads foram produzidos ao longo de dois mil anos tendo início antes do Budismo até à Idade Média. Da compreensão dos upanishads  resultaram duas visões da realidade: Dvaita e Advaita. A visão dvaita diferencia o criador da criatura. Na advaita criatura e criador são uma única realidade. A criatura não é um objeto externo ao criador mas, a sua manifestação.

A filosofia não dual (Advaita Vedanta) teve como principal expoente o filósofo Chankara Charya (788 – 820 d. C) . Chankara concebia Deus ou o Ser supremo (Brahman, sem atributos) como a única realidade existente, um “primeiro sem segundo”, ao mesmo tempo transcendente e imanente. Um ser que existe em si mesmo e se manifesta de maneira velada por trás das aparências e fenômenos do mundo. O mundo é ilusório. Só existe Brahman. Brahman é o mundo. Essa filosofia está presente no pensamento de Kabir que  também sustentava uma visão monista da realidade. Deus em tudo se manifesta e, simultaneamente, transcende a toda a manifestação. Para concluir cito um de seus poemas onde essa forma de pensar me parece bastante evidente:

[Poema 14]

O rio e suas ondas correm juntos. Que diferença existe entre eles?

A onda que sobe é água do rio. A onda que desce é água do rio.

Ao subir e descer como onda, a água continua a ser rio.

No interior do supremo Brahman, os mundo são contas de um rosário.

Ao girar o rosário entre os dedos, recita o Nome com sabedoria.

[Poema 7]

Ao desvelar-se, Brahman dá a ver o invisível.

Como a semente carrega a potência da árvore,

E a árvore traz consigo a promessa da sombra,

Assim, Ele engendra o incontável sem forma,

E o incontável, miríades de formas sem conta.

 

Em Brahman, o ente; no ente, Brahman:

Sempre distintos; todavia, sempre um.

Ele: a semente, a árvore, a sombra.

Ele: o sopro, apalavra, o sentido.

Ele: também o que não pode ser dito.

 

No interior da alma, vejo a alma suprema.

No interior da alma suprema, o grande ponto*

No interior do grande ponto, o reflexo.

Ó irmãos, como expressar tal maravilha?

Kabir é abençoado por ter esta visão!

 

*O grande ponto, é o mahabindu, um conceito fundamental da cosmogonia hinduísta. Conforme suposição dos antigos sábios, nesse ponto sem dimensões , nesse “nada que é tudo”, para repetirmos as palavras de Fernando Pessoa, o Absoluto, ensimesmado, preexiste a toda manifestação e relativização (nota do livro citado).

Imagem de svklimkin por Pixabay 

No vídeo, mais explicações sobre o pensamento de Kabir. Quem comenta é José Tadeu Arantes, o mesmo que traduziu o livro: Kabir: Cem Poemas. Vale a pena ver! 


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