Diabo Mudo
Levantei-me de madrugada e, como sempre, cumpri o mesmo ritual diante do espelho: fazer a barba. Devo confessar que isso me cansa um...
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Levantei-me de madrugada e, como sempre, cumpri o mesmo ritual diante do espelho: fazer a barba. Devo confessar que isso me cansa um pouco. Não gosto de ficar preso diante do espelho. Mas, não tem outro jeito. Deus não permitiu que a gente visse o próprio rosto. Então os espelhos são necessários para fazer a barba, tirar cisco no olho, ou ver se está tudo em ordem. Nesse sentido, o espelho é necessário e bom. Por outro lado, ele pode ser um instrumento do mal. Algumas pessoas se perdem, literalmente, diante deles, numa bestial contemplação de si mesmas!
Pe Antônio Vieira chegou a chamar o espelho de “Diabo mudo”. Isso mesmo. Sem dizer uma palavra, esse objeto pode levar você para o inferno. A expressão foi usada por ele num sermão pregado em 1651 às religiosas de São Bernardo, no Convento de Odivelas, em Portugal. Dizia que as únicas imagens que deveriam existir nos mosteiros seriam as de Cristo e da Virgem Maria. Imagino que o padre estivesse condenando a vaidade, esse “diabinho” que entra pelas frestas das portas e leva a pessoa a cultuar a própria imagem.
O vaidoso extremado faz monumento de si mesmo e coloca-o nas praças para adoração pública… Nessa perspectiva tenho o direito de pensar que Pe. Antônio Vieira morreria ao ver os “Big Brothers” da vida. Nesses programas as pessoas se expõem à toda forma de ridículo apenas para ter a imagem reconhecida e, posteriormente, ganhar dinheiro com isso. Estamos em plena cultura do simulacro (imagem)! O “diabo mudo”, ou seja, os espelhos, na época de Pe. Antônio Vieira se envergonhariam diante do que vemos atualmente. É bom lembrar que a palavra “imagem”, no grego quer dizer “fantasma”. Algo que não tem conteúdo físico. Por isso o mundo atual está mal assombrado. Os fantasmas estão por todos os lados, sobretudo, nos meios de comunicação que trabalham com imagem.
No evangelho de S. Lucas ( Lc 11, 14-23), Jesus é chamado à expulsar um diabo mudo que havia se aninhado no interior de um jovem. Esse diabo o impedia de expressar. Roubou-lhe a capacidade de comunicação… Comunicar é estabelecer uma ponte com o outro, coisa que o vaidoso não consegue fazer. Ele “usa” o outro para buscar aplausos em favor de si mesmo. Não foi isso que aconteceu no planeta do vaidoso quando esse recebeu a visita do pequeno príncipe? Nesse planeta só habitava um homem e, no entanto, ele se achava o mais bonito de todos…
Na mitologia grega Narciso foi a grande vítima do espelho. Ele se achava o mais lindo de todos os homens. Um dia, ao ver-se refletido na superfície de um lago apaixonou-se perdidamente por si mesmo. Diante da própria imagem caiu no lago e morreu afogado. Hoje os espelhos são poucos para os narcisos… Deus me livre disso! Prefiro viver muito sem os espelhos a morrer plantado diante deles. E você?
Imagem de Scott Webb por Pixabay
Imagem de Scott Webb por Pixabay